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domingo, 9 de outubro de 2011

Guerra Junqueiro: A Caridade e a Justiça

Ontem à noite lembrei-me fortemente de meu avô Diogo. Homem forte, bravo, honesto e lutador; como sertanejo que era nascido nos sertões paraibanos; que muito me ensinou em sua sabedoria popular e autodidata, posto que não lhe foi dado avançar além do primário na educação formal. Porém, como poucos fazia "conta de carreirinha" e tinha uma caligrafia de causar inveja a profissionais.

Lembrei-me das dezenas de livros que tinha em sua estante e que lia com um dicionário ao lado, para engrandecer seus conhecimentos; assim como das vezes que me fazia sentar a seu lado para ler as prosas e declamar poesias. Talvez por isso tenta me dedicado tanto a aprender o idioma e que tenha se mostrado recentemente minha veia cordelista aqui apresentada.

Sua benção, portanto.

Das obras que me mostrou, veio à mente uma poesia que me ajudava a declamar mas que não lembrava o nome, apenas trechos isolados encravados na minha memória.

Com a ajuda de São Gugol, achei o que faltava para incluí-la aqui.

Abílio Manuel de Guerra de Guerra Junqueiro, nasceu em 1850 lá em Trás-os-Montes, e se fez notável não só pela sua contribuição à literatura portuguesa, mas também pela participação na vida política do país. Esta, assim como outras fases de sua vida pessoal, influenciaram em muito em sua obra. Era advogado, formado em Coimbra, e também em teologia. Foi deputado e abraçou a causa republicana. Com a República instalada, foi ministro na Suíça até a guerra de 14; depois disso, desapontado com os rumos do país, abandona a carreira política e a literatura, falecendo em 1923. Deixo com você um pequeno extrato da poesia que citei e da qual lembrei alguns trechos. Imensa que é, está à disposição na íntegra AQUI, numa página especial prá ela.

Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
Corriam pelo ar como grandes manadas
De búfalos. A Lua, ensangüentada e fria,
Triste como um soluço imenso de Maria,
Lançava sobre a paz das coisas naturais
A merencória luz feita de brancos ais.
As árvores que outrora em dias de calor
Abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor,
Sonhavam, na mudez hercúlea dos heróis.
Deixaram de cantar todos os rouxinóis.
Irrompia outra vez da grande névoa escura,
E inundavam-se então as chagas de Jesus
Nas pulverizações balsâmicas da luz.
No momento em que havia a grande escuridão
Cristo sentiu alguém aproximar-se, e então
Olhou e viu surgir, no horror das trevas mudas,
O covarde perfil sacrílego de Judas.
O traidor, contemplando o olhar do Nazareno,
Tão cheio de desdém, tão nobre, tão sereno,
Convulso de terror, fugiu...

Na enormíssima jaula atroz da expiação.
E quando eu entro ali na imensa confusão
De tigres, de leões, d’abutres, de chacais,
De rugidos febris e de gritos bestiais,
Fica tudo a tremer, quieto de horror e espanto:
Caim baixa a pupila e vai deitar-se a um canto.
Houve um grande silêncio. O infame Iscariote,
Como um negro que vê a ponta dum chicote,
Tremia.

Em cima da consciência, a pútrida, a execrável!
Com ele hei de fundir a algema inquebrantável,
A grilheta que a tua esquálida memória
Trará, arrastará pelas galés da História,
Durante a eternidade ilimitada e calma.
Essa bolsa que aí tens é o cancro da tua alma:
Já se agarrou a ti, ligou-se ao criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do leproso,
Como o ímã ao ferro e o verme à podridão.
Não poderás jamais largá-la da tua mão!
És traidor, assassino, hipócrita, perjuro;
O teu olhar oblíquo e o teu perfil nojento.
Esse crime, bandido, é um crime que profana
Todas as grandes leis da consciência humana,
Todas as grandes leis da vida universal.
Esconde-te na morte, assim como um chacal
No seu covil. Adeus, causas-me nojo e asco.
Deixo dentro de ti, Judas, o teu carrasco!
És livre; adeus. Já brilha o astro matutino,
E eu, caçador de feras, cumprindo o meu destino,
Continuarei caçando os javalis nos matos.”
Vinha rompendo ao longe a fresca madrugada
Judas, ficando só, meteu-se pela estrada,
Caminhando ligeiro, impávido, terrível,
Como um homem que leva um fim imprescritível,
Uma idéia qualquer, heróica e sobranceira;
De repente estacou. Havia uma figueira
Projetando na estrada a larga sombra escura;
Judas, desenrolando a corda da cintura,
Subiu acima, atou-a a um ramo vigoroso,
Dando um laço à garganta. O seu olhar odioso
Tinha nesse momento um brilho diamantino,
Reto como um juiz, forte como um destino.
Nisto ecoou através do negro Céu profundo
A voz celestial de Jesus moribundo,
Que lhe disse:
- “Traidor, concedo-te o perdão
Além de meu carrasco és ainda o meu irmão.
Pregaste-me na cruz é o mesmo, fica em paz,
Eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.
Eu tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.
Não te cause remorso o meu atroz suplício,
Estes golpes cruéis, estas horríveis dores;
As chagas para mim são outras tantas flores!”
A tua caridade humanitária e doce,
Eu prefiro o dever terrível!”
E enforcou-se. "

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